( Que me perdoe Pablo Neruda pelo plágio, pela usurpação do título. Mas apenas me aposso da história. Vivi-a e hoje narro-a para elevá- -la, pois a mim fez-me maior... )
1.
A sensação de não saber o que fazer não mais me incomoda... Não mais me rendo à ansiedade. Mantenho-me fiel aos impulsos, mas da alma. Descobri ser alma pensante e, embora de coração errante, se errar é não mais que isto, feliz a cada erro cometido, pois nele meti--me inteira e saio maior. Quero sempre ser assim, uma "grande pequenina", mulher menina. Assim fui contigo, sabe-lo bem. Reconheci-te nos olhos de menino que tantas vidas me olharam e mantém o mesmo brilho, como se me olhasses sempre pela primeira vez. Aquele cruzar de olhos cegou-me a mente... Não te pensei. Vi--te com a alma. Fiquei feliz por reencontrar-te. E naquela fracção de segundo em que calei minha mente, apenas te reconheci. Tudo em ti me era familiar. Nunca te tinha visto, no entanto poucas vezes me tinha sentido tão intíma de alguém.
A minha mente acordou... Calou-me a alma, o meu coração pensante. Esqueci-me de ti.
Os dias atropelaram-se sem que te visse mais. Não me importava, nem sabia da tua importância. Tomava-te por simples figurante, havia seguido em frente, liguei a mente. Não mais me lembrei por muito tempo daquele olhar, que de olhar tinha pouco, que me engolira para dentro de mim e me devolvera a ti. A verdade é essa, tinha a força interminável das coisas que não começam nem acabam, são. Sem saber, renasci ali. Tu eras peça solta do meu puzzle e também eu o era. A reminiscência de mim não me invadiu de imediato. Ainda hoje a construo.
2.
Um dia antes do reencontro, um amigo comum, o culpado pelo nosso "primeiro encontro", consolava-me em pleno desgosto amoroso. Achava-te figurante, porque julgava ter encontrado o meu protagonista. Estava apaixonada. Mas com uma paixonite aguda das fortes. Tudo nele me atraía, principalmente a idade e a distância que nos afastava. Tudo parecia difícil, desafiante, cada detalhe me prendia mais naquele romance de final de Verão. Via-o como um príncipe. Mas nunca o vi como um homem. Foi um quase amor por isso mesmo. Nunca o vi. Mas a cegueira que me afectava, e que afecta os enamorados, não me fazia ver nada para além do desejo irremediável de ceder aos meus caprichos. Como qualquer jovem apaixonada, sentia-me enterrada viva. Sentia-me a sucumbir de desejo daquele romance estival e meu corpo era meu túmulo, pois não podia viver o que ele me pedia, gritava. O Verão deu lugar ao Outono, e para além das folhas também eu me sentia a cair. Ele, essa grande paixão, tinha terminado tudo. E o, até então romance shakespeariano, virou uma condenação de infelicidade. O exagero da sentença ditou-o a paixão, que me afectava todo e qualquer discernimento. Achava que por muitos mais homens que viesse a conhecer, nenhum deles me faria sentir assim. Enganei-me. Não me cegaste de imediato como ele, mas mais que tudo, levaste-me a ver. E quando nunca vimos, não reconhecemos logo quando começamos a ver. Àquele tempo não sabia, nem suspeitava.
Tomava café num lugar acolhedor com o Guilherme, meu grande amigo, e teu amigo de infância. Conhecia-te as travessuras, povoavas-lhes as memórias de criança. Foi através dele que meses antes nos conhecêramos. Naquela rua do Bairro Alto eu desci até ti. Tudo inclinava em tua direcção, até a rua me levava a ti. Como velhos amigos abraçaram-se e, entre cumprimentos, olhámo-nos. Sem saber tudo começou ali.
O Guilherme consolava-me e brincava com o quão díficil e exigente eu era relativamente aos homens. Dizia-me que eu gostava deles sensíveis, mas com atitude. Bonitos, inteligentes, com o sentido de humor pronunciado. Enfim, o dignóstico não lhe parecia fácil, pois via na minha cura um novo amor. Esse era o tratamento, mas o pior é que não vinha em frascos, e a espécie requerida era rara. Começou a correr os amigos na cabeça, depois em voz alta, e achou que se alguém cumpria esses requisitos eras tu... Aquele amigo que eu conhecera meses antes no Bairro Alto.
- O meu amigo Afonso é que é mesmo o tipo de homem que tu gostas. - Disse, num tom de seriedade melosa.
-Qual Afonso? Conheço?
-Conheces. Viste-o uma vez no Bairro Alto.
-Já sei quem é. Achas? Só tu para veres a cura desta amiga enferma!
O dia amanheceu. Sei que a semana ia a meio. Nessa tarde repetiu--se o encontro habitual em volta duma mesa de café, que tanto eu como o Guilherme gostávamos. Entretinha-nos a conversa, confortávamo-nos por entre cheiros de chá, café e canela. Faziamo--lo diariamente. Pela arte de conversar, pelo prazer de conviver. Nesse dia o cenário do duelo de palavras era o Tejo. Era quase Inverno.
O Guilherme e eu sentámo-nos, e mais uma vez demos corda às línguas. Somavam-se-nos os cigarros nos dedos e as ideias lançadas para a mesa. Quando olhei em frente não quis acreditar. Eras tu! A cura anunciada! Havia-te visto uma vez, fazia meses. E estranhamente apareces à minha frente, após o Guilherme te ter anunciado como o meu Messias.
Lembro-me como se fosse hoje do teu casaco de marinheiro e, naquela esplanada à beira rio plantada, parecia o figurino perfeito.
O cabelo rapado havia dado lugar a uma cabeleira farta, mas os olhos que rodeava eram os mesmos. Mas ali pareceste-me menos menino e mais homem. O cabelo rapado dava-te um ar mais franzino de menino traquinas. Algo me atraíra em ti no primeiro instante em que te vi no Bairro Alto. Mas essas forças eu ignorei. Mas agora estavas defronte a mim e, para lá das coincidências, achei-te invariavelmente atraente, irresistivelmente charmant. Não escutava ainda minha alma, permaneci na ignorância, mas naquela tarde acordaste-me os sentidos. Parecia um plano perfeito, que se servia de todos os meios.